MEIA HORINHA ou COMO CONTRADIZER MEU PRÓPRIO TEXTO
Ontem fiz um post sobre meu filho de 6 anos, aprendendo a ler uma partitura enquanto eu tocava sanfona. Essa é a maternidade ideal, onde crianças são estimuladas logo cedo no universo da música e das artes, ampliando a sensibilidade e trabalhando tantas outras conexões. No entanto, de certa forma era um relato romântico, visto que se tratava do recorte de um momento. Porque eu falava da maternidade ideal.
Falamos então da maternidade real. Aquela da artista que precisa ensaiar o acordeom pois tem uma apresentação durante a semana, mas os filhos chegam junto, com a curiosidade ímpar da criança desbravando mundos, e pedem para aprender a partitura. Você mostra, assim como também mostra as teclas que eles tanto querem explorar. Arriscam um “Meu Lanchinho” no teclado. Você em êxtase pelas conquistas do carinha e da pequena, mas precisa ensaiar, pois tem uma apresentação na semana. Eles tocam todas as teclas, em diferentes ordens. Estão explorando as artes, é lindo. Mas o treino...
E é assim. Você sabe que precisaria se dedicar mais ao estudo do instrumento musical. Que isso te fortaleceria como artista, te tornando mais completa e requisitada. Isso te ajudaria a abrir portas, inclusive aquelas que foram conquistadas a tanto custo e dedicação, mas que foram fechadas logo após a maternidade. Você sabe que se pegasse o acordeom meia horinha por dia você não mais erraria as músicas que se propõe a tocar em cena. Faz uma agenda, um roteiro programado. O que são meia horinha por dia? – pensa. Mas vem a vida, e todas suas solicitações. É preciso preparar o café-da-manha, arrumar as mochilas, cuidar das roupas, dos brinquedos, das tarefas, dos carinhos, dos passeios, das festinhas dos amiguinhos, dos presentes das festinhas dos amiguinhos, dos banhos, das vacinas, das reuniões da escola, das doenças não programadas e das que se programam a chegar. Precisa dar conta de todo um universo das pequenas criaturinhas. Além de seu trabalho, sua vida pessoal, social, seus sentimentos...
Era só meia horinha por dia. Mas hoje não deu. Nem amanhã. O acordeom passa dias encostado, em cima da mesa ou em um canto da sala para que fique visível, e assim que sobrar uma brecha você toque um pouco. Não há brecha. Você então coloca de volta no case, pois já se passaram semanas sem tocá-lo e você não quer que junte poeira. Passam-se então meses. Mas você tem apresentação na semana. Meia horinha apenas te impediria de errar aquelas notas e acordes que você já sabe bem, mas que por falta de prática os dedos insistem em esquecer. Você tenta outras possibilidades. Quando eles não estão contigo, você precisa dar conta de todo resto da vida. Quando eles estão contigo, gostam do instrumento, dançam enquanto toca, escutam e aplaudem. Às vezes. E em outros momentos colam figurinhas nas partituras, empurram o botão do respiro pra dentro da sanfona, correm e quase derrubam o instrumento, quase cai água, quase fura o fole. Gritos e surtos seus nesse meio tempo. Enquanto você treina, brincam entre si, de apertarem os botões e saírem correndo, rindo, lindos. Também brigam entre si, se batem, e xingam, solicitando sua interferência. Às vezes rola apelar pra alguma tecnologia viciante, fazendo-os esquecer de ti por alguns instantes. Às vezes rola um pai, e você consegue se trancar no quarto por algum tempo, ignorando os gritos na porta de “Quero a mamãe”. Às vezes. Já ocorreram ciúmes do instrumento, pedindo colo e afastando-o com o corpo. Já teve pocket show com a sanfoninha de brinquedo em miniatura. Tudo é lindo, tudo é festa, tudo é vida. Mas tem apresentação durante a semana.
A maternidade real me ensinou que a trajetória será injusta. O instrumento me foi afastado de mim. Assim como minha vida profissional, minha vida social, minha vida pessoal. É mais difícil dar um passo agora, qualquer que seja. É um misto de dor e alegria, ao ver meu filho de 6 anos aprendendo a ler uma partitura de forma tão espontânea, e ao mesmo tempo em saber que aquela única meia horinha que você teria pra treinar foi dada para esse precioso momento de descoberta e encantamento. A maternidade me distanciou das minhas conquistas profissionais e tudo o que eu poderia ser se tivesse meia horinha para o treino, para um alongamento, para ler um texto, para terminar um projeto, para responder um e-mail... Mas não há essa meia horinha. Há apenas a apresentação na semana.
A maternidade real me ensinou que mais do que as mulheres, mas sim as mães são silenciadas. Silenciadas pelo sistema, pela sociedade, pelos homens, pelas outras mulheres, pelos pais. E nessa solidão constante e diária, aprendemos a coexistir, resignificando a própria existência. Em casa acontece a maternidade ideal quase todo dia. Onde eles brincam de música, exploram instrumentos, cantam Chicos e dançam jongos. Você vê seus pequenos artistas inatos treinando saltos mortais e ouvidos absolutos. São prodígios da arte, graças a esses estímulos que a anulação de si mesma permitiu a eles. Porque não houve a meia horinha, e mais uma vez você irá errar algumas notas e acordes durante a apresentação, sem que o público a perdoe por isso. Mas aqui em casa também tem a maternidade real diariamente. Da dor da invisibilidade de uma mãe chorando sozinha no chão no banheiro.
Sabryna Mato Grosso
13.MAI.19
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